quarta-feira, 19 de julho de 2023

- A vida dá voltas | Ep. #2

Ep. #2 - Mais


Ao mexer-se, ainda a dormir, deu um toque leve no telemóvel, que caiu ao chão com estrondo.
Acordou, sobressaltada.
“O ecrã partiu!” foi a primeira coisa que pensou. Mas decidiu não descobrir de imediato, visto que o desconforto que sentia era mais incomodativo.
Sentia-se pegajosa, cansada, magoada e triste. Só queria tomar um banho e voltar a dormir.  Mas não era isso que ia acontecer.

Acabou por pegar no telemóvel para ver as horas, e para além de perceber que estava muito perto de se atrasar, viu que o ecrã sobreviveu à queda intacto. Tinha também 7 mensagens novas e 4 chamadas não atendidas.
Correu para a casa de banho.

Já no banho, começou aos poucos a lembrar-se do que se tinha passado na noite anterior, de tudo o que descobriu, da volta que a sua vida ia dar, do quão difícil e moroso seria ultrapassar tudo, e inevitavelmente, começou a chorar.
Uma coisa é perceber que algo não está bem e que as coisas se estão a degradar, até um ponto de rotura - é como se fosse um estágio para um fim anunciado. Outra coisa, completamente diferente, é achar que se vive numa vida quase perfeita, feliz e cheia de planos, com um feto no ventre, e de repente, num dia aparentemente como outro qualquer, sentir que tudo desabou, sem uma despedida ou sequer um pré-aviso. Doloroso demais. Brutal.


Gostava verdadeiramente do Hel (diminutivo de Heliodoro), e conheciam-se há tantos anos que parecia impossível viver sem ele.
Tinham uma relação incrível, a qual nunca antes tinha sonhado poder vir a ter. Apesar de algumas diferenças, as semelhanças estavam numa sintonia perfeita e adaptavam-se muito bem um ao outro.
Quase todos os dias dos últimos 14 anos, comentava que se considerava uma sortuda por se terem conhecido no meio de tanta gente que existe no mundo.

Tinham-se conhecido há 15 anos. Aliás, conheceram-se os três, há 15 anos atrás, pois também tinha conhecido a sua atual melhor amiga, Teófila (“Te” para os amigos), na mesma altura, no início da faculdade. Os 3 de cidades diferentes, em cursos diferentes e com maneiras de ser e viver muito diferentes, acabaram por alugar quarto na mesma casa, por coincidência. No entanto rapidamente se aperceberam que havia ali algo e poderiam desenvolver amizades verdadeiras.

Ao fim de 3 meses a viverem na mesma casa, Te (que era bissexual, mas dizia ser lésbica, para não ser assediada pelos rapazes), tentou beijá-la - numa noite animada, onde tinham ido sair as duas, para dançar. Angelina por sua vez, como não sentia nada recíproco, acabou por lamentar e esclarecer a situação. Ficaram apenas boas e verdadeiras amigas.

Já o Hel, demorou 1 ano até decidir avançar, pois desde cedo que estava apanhadinho por Angelina, mas só após muito incentivo dado pela Te, é que decidiu numa noite quente de  verão, arriscar e beijar Angelina.
Correu bem, ela também gostava muito dele e tinha interesse em mais.

Daí para a frente tudo correu às mil maravilhas. Tinham rotinas diferentes, alguns hábitos, amigos e passatempos diferentes, mas conseguiam sempre chegar a um acordo mútuo, o que tornava a relação muito feliz e saudável. Era tudo muito orgânico.
Terminaram os cursos, e visto que já viviam juntos, a decisão de comprar casa e continuarem juntos era mais que óbvia. Te é que não se mudou com eles desta vez, mas encontrou um apartamento no mesmo prédio, por isso, era quase como se continuassem os 3 juntos.

Seis anos mais tarde, Te decidiu abrir uma empresa, e uns meses mais tarde convidou Angelina para ser diretora comercial, convite que Angelina aceitou de imediato.
Hel, também lá foi parar, assim que o departamento informático teve necessidade de um diretor - apesar do seu curso universitário ser de marketing, acabou por se virar para as tecnologias, tirando um curso mais técnico, 2 anos depois de terminar o curso universitário.

A vida aconteceu, trabalharam muito, a empresa cresceu, viajaram, riram, celebraram, parecia que tudo lhes corria sempre bem.

De vez em quando, Angelina falava sobre filhos mas Hel não se sentia pronto, dizia que precisava de mais tempo para estabilizar profissionalmente e poder ter mais tranquilidade financeira e tempo livre para ser pai. Isso não abalou a relação, nem os planos de ambos como pessoas independentes. Iam falando sobre o assunto de tempos a tempos, ainda que Hel fugisse do tema sempre que possível, mas visto que Angelina também pretendia investir na sua formação mais um pouco, acabaram por ir adiando.
Um dia, ao fim de uns anos, Angelina engravidou, numa fase em que a empresa estava em expansão internacional. Ambos estavam muito ocupados, e Hel em especial, pois viajava com frequência. Mas ainda assim, decidiram avançar com a ideia, e até decidiram casar antes da criança nascer.

Na véspera de mais uma viagem, Hel, que era muito ambicioso e queria sempre mais de tudo o que já tinha, Insistiu com Angelina para se mudarem para uma casa maior, fora da cidade e da sua confusão. Mas Angelina queria a todo o custo ficar na cidade: adorava a agitação, o stress, a vida do dia a dia na cidade grande.
Argumentaram até à exaustão e a conversa tornou-se numa discussão feia e pesada. Não era muito normal discutirem feio, mas quando o faziam, acabava sempre com Angelina a chorar e Hel a sair de casa, deixando-a a falar sozinha.


Angelina olhou para o telemóvel enquanto esperava pelo elevador, já no edifício da empresa: 8:28.

Ia chegar à reunião 1 ou 2 minutos atrasada, mas o mais grave seria mesmo a dificuldade em enfrentar a amiga em modo profissional, depois de tudo que tinha descoberto na noite anterior. Não era uma pessoa violenta ou rancorosa, não sentia necessidade de a agredir, apenas sentia muita tristeza, mágoa e um pouco de vontade de nunca mais olhar para ela. Depois de tanto que tinham passado juntas, como tinha sido capaz de lhe fazer isto e continuar a fingir todos os dias, como se nada fosse?

Já na sala de reuniões com outros membros da direção de outros departamentos, apercebeu-se que a sua amiga Te estava a entrar na sala de Reuniões: Alta, Magra, cabelo preto curto, já com alguns cabelos brancos, de Bazer branco e um pouco de maquiagem a mais, que parecia esconder umas olheiras.

Te deu os bons dias, cumprimentando de seguida todos os membros presentes e por fim informou em voz alta:
“Antes de mais, quero que recebam a nossa mais recente contratação, para a direção do departamento de marketing. Finalmente a cadeira vai ser ocupada.”


De repentem todos olham para a porta da sala, e surge o Hel.

Sem comentários:

Enviar um comentário